Foi bonito ver tricolores e colorados convivendo civilizadamente ontem no Beira-Rio. Lado a lado, cada um incentivando o seu time, sem brigas, sem confusões, espetáculo lindo de se ver. Dizem os que viram que foi bonita também a chegada pelo Caminho do Gol reeditado, com a Banda da Brigada Militar animando a festa. Tudo muito certo, tudo muito bem, entretanto, é preciso investigar o que está por trás desta novidade, saudada por todos, que fez até um colunista de um periódico da capital dizer que agora sim podemos encher o peito e cantar a plenos pulmões a parte do nosso hino que exorta toda a terra a se espelhar nas nossas façanhas. A nossa façanha, neste caso, atende pelo nome de torcida mista.![]() |
| Zona Mista |
Retomando a história do clássico Gre-Nal, veremos que até algum tempo era comum as torcidas dividirem os espaços nos estádios. Não sentados um ao lado do outro, como ontem, mas em número razoável de torcedores de um time no estádio do adversário, cada na parte que lhes era reservada, sabendo que o vizinho de arquibancada não se importaria nenhum pouco com os xingamentos ao outro time. E a estatística de incidentes graves quando havia esta prática é inexpressiva. Aos poucos os espaços foram ficando menores, menores, menores, até chegar ao ridículo panorama dos dias de hoje, quando no Beira-Rio são liberados mil e poucos ingressos para gremistas e no estádio do Grêmio outros mil e tantos para a torcida colorada. E esses mil e poucos são "escoltados" (eufemismo para "conduzidos tipo gado") até o estádio do rival, a fim de que não provoquem tumulto pelas ruas.
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| Vida de gado... |
E o "cidadão de bem", diante dessa "horda de bárbaros", perde o direito de ir ao jogo. Mas e quem é este cidadão de bem? Que figura social tão etérea é esta, criada para justificar a repressão sobre uma parcela da comunidade que se quer ver, por diversos motivos, afastada do convívio social? Depende do momento. Quando o jogo é decisivo, o cidadão de bem é todo o torcedor que possa ir ao estádio e empurrar o time para cima do adversário. Em outros momentos, este torcedor não serve mais, dele não se precisa, então ele vira o bode expiatório a partir do qual se explicam todas as mazelas do espetáculo futebolístico. Tudo o que acontece de ruim dentro e no entorno do futebol é culpa dessa gente incivilizada, incapaz de um convívio social norteado pela paz, pelo respeito e pela urbanidade.
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| Festa! Ou... |
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| ...guerra? |
A esta altura os nós que entrelaçam esta teia já começam a ficar mais soltos. Tudo faz parte de um contexto em que se quer transformar o futebol, que sempre foi a alegria do povo, em um espetáculo privado, destinado aos privilegiados que podem pagar por ele. O futebol moderno nada mais é do que um grande negócio, que faz circular valores estratosféricos e que estabelece relações de poder extremamente delicadas. Neste cenário, o povo que ama a camisa do seu time e que não quer mais do que ser feliz com os seus ídolos em campo, não tem mais espaço. É a lei do "paga ou fica fora".
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| No Beira-Rio... |
...enquanto isso, do lado de fora...
Dentro de campo, um jogo absolutamente chato, cujo resultado não poderia ser mais apropriado aos interesses do sucesso da festa. Imaginem se algum dos times faz um gol e os ânimos se acirram na zona mista? A civilidade correria sério risco de ser atropelada pelos instintos mais apaixonados de (alguns) torcedores que ainda vão ao estádio para... torcer. O (x) 0 x 0 no placar atendeu aos anseios daqueles que pretendiam provar que é possível a convivência de colorados e gremistas no mesmo espaço, mas que para isso dar certo é preciso que seja "gente de bem". O fato de não ter sido chutada uma bola sequer com perigo a qualquer um dos gols durante os 90 minutos, de não se ter notado, exceto por raríssimos lances, empenho dos jogadores em ganhar a partida, pode ter alguma ligação com o contexto do que está se discutindo neste texto? Não sei, mas, por exemplo, o Haroldo de Souza, ilustre cronista esportivo disse, em seu comentário na rádio hoje pela manhã, que o resultado do jogo foi decidido na janta dos técnicos na sexta-feira. Será que a janta não foi apenas uma formalização do que já tinha se decidido em alguma sala de algum escritório da cidade? E o povo, além de ser impedido de ir no estádio, parece ter sido fraudado dentro de campo.
E viva a festa na high society!!





