NOTA DE ESCLARECIMENTO INICIAL

Somos COLORADOS e estamos preocupados com os rumos do CLUBE DO POVO. Por isso criamos este blog. Nosso maior objetivo é resgatar a alma do Sport Club Internacional, cujos alicerces estão fincados nas classes populares, que sempre deram sustentação e transformaram o INTER no GIGANTE que ele é.


O Inter NÃO nasceu em 2002!!!



domingo, 12 de junho de 2016

O quarterback e o gaiteiro tricolor

Em 1969, quando o Beira-Rio foi inaugurado, o meu pai concluiu que a vida dele como torcedor de estádio havia chegado ao fim. Aos 54 anos, entendia que de fato o Inter se tornara muito grande para o glorioso, porém acanhado, Eucaliptos. Continuou torcendo apaixonadamente pelo Inter, mas em casa, pois achava que não conseguiria controlar a tristeza de não poder ir ao vestiário ou sair pra tomar um chopp na Rua da Praia com os jogadores, como fazia com os craques-heróis-Humanos do Rolo Compressor.

Sensação parecida tive quando o velho Beira-Rio deu lugar à suntuosa casa de espetáculos em que o Inter manda seus jogos neste século XXI. Assim como o pai, eu sabia que o nosso estádio precisava de algumas reformas e adaptações, mas não imaginava que o resultado seria um estádio sem alma, uma casa em que o povo não é bem-vindo. Só que eu sou um pouco mais teimoso que o Velho e resolvi não largar o osso assim tão fácil. Encontrei alguns malucos que pensavam como eu e, junto com eles, resolvi tentar mudar as coisas de dentro pra fora. Assim, com o Povo do Clube, Movimento cuja essência vai ao encontro de tudo o que eu acredito em termos de futebol, cheguei ao Conselho Deliberativo do clube. Muitas vezes antes disso fui alertado que entrar na política do clube é um risco enorme. Torcedor, conselheiro, dirigente são personas incompatíveis, me diziam. Que o digam meus grandes amigos Alessandro e Pilla, que certamente abririam mão do cargo/encargo de conselheiro se as coisas andassem melhores pro povo colorado.

Mesmo com todas as dificuldades, não poderia imaginar viver pra ver o que eu vi ontem na EX-CASA DO POVO COLORADO. Repito, novamente em caixa alta: EX-CASA DO POVO COLORADA, porque é isso que o Beira-Rio é hoje.

Era pra ser um momento de alegria. Depois de bastante tempo eu iria ao jogo com a minha esposa, Patrícia, e sempre é motivo de felicidade encontrar xs amigxs no Beira-Rio. A sucessão de eventos patéticos, porém, me provocou uma terrível sensação de ser um estranho na minha própria (ex)casa. A começar por ver as cheerleaders (!) coloradas, com suas sainhas curtas e suas dancinhas mecanicamente tristes, se preparando pra encarar um frio como há tempos não se via por esses lados e um ambiente ainda hostil à presença (que deveria ser) natural das mulheres no espaço destinado ao esporte "praticado por homens" ("futebol é pra macho...").  Longe de ser contra as inovações, apenas acho que os costumes não podem ser impostos a partir de um modelo social/econômico/cultural totalmente diferente, em detrimento às manifestações populares espontâneas. Paz, Povo e Festa, porém paz E povo E festa, não paz SEM povo e com festa enlatada. O constrangimento a que essas meninas são submetidas a cada jogo no Beira-Rio é lamentável. Primeiro que o efeito da sua atuação é pífio (sem trocadilhos), pois quem ainda anima a torcida é a própria torcida. Além disso, as coisas que elas são obrigadas a ouvir das arquibancadas...

Voltando ao pré-jogo, cenas típicas de um filme de comédia eram protagonizadas pelos jovens praticantes do american foot-ball no pátio do estádio, para promover um evento inexplicável, saído da cabeça "iluminada" dos nossos nobres diretores, ou melhor, de um nobre diretor, cujo nome me reservo o direito de não declinar. Não tenho nada contra o futebol americano, embora se tivesse que escolher, optaria pelo Rugby, possivelmente. Mas, de novo, querer impor uma cultura de cima pra baixo é algo que vai de encontro a tudo o que o fUtEbOl - pronunciado com todo seu aportuguesamento -, representa no contexto social brasileiro, tema que não vou adentrar, pois demandaria muito tempo e não é o objetivo deste escrito. O fato é que vai haver o jogo de futebol americano no próximo fim de semana e isto chama outro assunto terrível.

Juntei do chão um papelzinho do evento, Gigante Bowl é o nome, se não me engano, e fiquei sabendo que a irmã do Cristiano Ronaldo será uma das atrações. Depois descobri que ela é cantora. Papas da Língua também vão estar, o que é bacana, porque o Zé Natálio é um baita colorado. Mas aí li um nome inacreditável no rol das apresentações artísticas: Renato Borghetti. Li de novo e confirmei, lá estava o nome do Renato Borghetti. Achei até que pudesse ser piada de mau gosto ou que talvez houvesse também um greNal de artistas ou alguma coisa assim, mas parece que não, ele é simplesmente um dos convidados (convidados provavelmente bem carinhos -$$...) que vão promover o evento. Talvez algum desavisado não esteja se dando conta disso, mas é como se houvesse um evento esportivo na Arena OAS e um dos convidados fosse o Rafael Malenotti, ou o Neto Fagundes, pra ficar na mesma seara musical. Amigxs, o Renato Borguetti toca com uma gaita azul, preta e branca, joguem no google e comprovarão. O Renato Borghetti se recusa a tocar sequer pequenos trechos do hino do Inter nos seus shows. O RENATO BORGHETTI É UM DOS ARTISTAS MAIS IDENTIFICADOS COM O GRÊMIO!! Será que é tão necessária a apresentação dele num evento no Beira-Rio? Que relação tem ele com o futebol americano ou com o evento específico que justifique a sua presença tricolor no gramado do nosso (ex)estádio? Ah, claro, talvez seja isso mesmo, o Beira-Rio é o nosso EX-estádio, o estádio que recebe melhor gremistas do que colorados...

O circo de horrores do vice Lim... (ops, eu disse que não ia escrever esse nome) continuou jogo adentro e de uma forma que causou constrangimento a quem é colorado e conhece a história do Inter, e ódio a quem tem o mínimo comprometimento com a cultura do país e com os rumos que as coisas estão tomando nesses tempos graves e tristes de retrocesso em todas as áreas. No intervalo, um teatrinho tétrico envolvendo uma das figuras mais queridas e caras ao torcedor do Internacional, símbolo da cultura e do folclore brasileiro, que já foi alvo de muita polêmica, inclusive de fortes manifestações neste blog, o Saci. A proposta: alegrar o Saci no Dia dos Namorados. Ora, desde quando o Saci é triste por não ter namorada? Qual o problema de alguém não ter namorada no Dia dos Namorados? Claro, o negócio é promover a data, então arruma-se até uma depressão pro Saci. E a maneira de acabar com essa tristeza não poderia ser outra que não arrumar uma namorada para ser oferecida como em sacrifício para o pobre e solitário rapaz. Evidentemente não passou nem longe a ideia de que o Saci possa ter uma orientação sexual distinta do padrão dominante, ele é hetero e ponto final. Partindo desse princípio, a narradora oficial resolveu ajudar o moço a encontrar aquela que resolveria os seus problemas numa data tão especial. Lá vai o o nosso bom Saci para o meio da torcida em busca da sua cara-metade. Abordou uma moça, cuja beleza ninguém contesta, mas esta, apesar de lisonjeada, não se permitiu corresponder ao galanteio, estava acompanhada. Vamos pra próxima, que também segue o padrão de beleza imposto e que também é comprometida. Por conta disso, o coitado do Saci sofre uma reprimenda pelos falantes: "Não te mete com essa, Saci, ela está acompanhada". Ou seja, o que garante alguma imunidade à guria não é a sua própria vontade de aceitar ou não o assédio, mas a presença heroica do seu namorado ou marido. Estivesse desacompanhada ou com uma namorada, o Saci poderia se meter à vontade, creio eu. Quando a coisa parecia ir mal, do meio da multidão (se bem que 16 mil pessoas no Beira-Rio está longe de ser uma multidão...) aparece a salvadora da pátria, aquela que vai tornar o Dia dos Namorados do Saci mais feliz, a Sacia (!). A primeira versão feminina do Saci com duas pernas, claro, porque pra quem já quis apagar o Saci da história do Inter por, entre outros motivos, ele ser um perdedor [sic], em face da falta de uma perna (procurem aqui no blog esse causo), a oferenda, ops, namorada do Saci tinha que ser "normal". E o normal, neste caso, também exige que ela seja preta, pois certamente não ficaria bem o Saci, um negrinho malandro, exibir uma namorada branca, oriental etc. E obviamente muito menos um namorado. Com esse encontro promovido por quem se compadeceu com a solidão do Saci se encerrou a busca dele pela companhia perfeita para o DN: mulher, pretinha, como ele (apesar de terem tentado branqueá-lo há bem pouco tempo), e com o corpo "em perfeito estado de funcionamento", sem nenhum "defeito".

Se você, que acha que o problema da sociedade atual é a patrulha do politicamente correto, que acha que é uma bobagem essa discussão toda em torno de racismo, de homofobia, de misoginia, que entende que há outras coisas mais graves pra se preocupar, bem, se você ainda está aqui, lendo, deve estar pronto pra trazer um sem número de "argumentos" contra tudo o que eu estou falando, inclusive pra dizer que eu é que dissemino os preconceitos com essas ideias. Saiba que isso me deixa muito feliz, porque enquanto gente como você for contra gente como eu, sei que vou pelo caminho certo. E se você, que não tem esse problema, que acha que realmente essa discussão é válida, ainda está aqui, pense comigo na carga terrível de preconceitos que essa encenação horrorosa trouxe:

- o Saci precisa de uma companhia no Dia dos Namorados, porque, como diriam Tom e Vinícius, é impossível ser feliz sozinho;

- não basta não estar sozinho no Dia dos Namorados, é preciso estar acompanhado por uma mulher;

-  também não é suficiente que a companhia seja uma mulher, é preciso que, como ele, a moça seja negra;

- mulher, negra e livre de "defeitos físicos" (bela, recatada...);

- existindo essa mulher perfeita pra alegrar o Saci, não pode ter sido dela a iniciativa, mas sim do macho, do chefe da matilha, que escolhe a oferenda - sim, criou-se toda uma situação em que a moça é oferecida para alegrar o Saci - e a leva pra casa, ou pra onde ele quiser, afinal quem decide essas coisas é elE;

- antes de encontrar o seu presentinho, porém, o Saci pode flertar e jogar o seu charme para quem quiser, mas não pode de maneira nenhuma se meter com mulher casada, já que o "proprietário" pode não gostar.

Não é preciso ser psicanalista ou antropólogo ou sociólogo ou cientista ou nada mais do que um bom observador pra perceber todos esses elementos presentes na narrativa do grande espetáculo criado para alegrar o Saci no Dia dos Namorados, cujo roteiro poderia ser sintetizado numa frase: "Ajude o Saci a encontrar uma negrinha pra lhe fazer companhia no Dia dos Namorados!" - Aliás, fossem realmente bons de marketing, lançariam esse desafio como uma promoção e o ganhador receberia também uma moça para se distrair no domingo... - Isso é realmente triste e assustador, porque, ao tempo em que a sociedade civil, ao menos parte dela, está se organizando na busca por construir um mundo melhor, com espaço para todos, essa encenação ridícula reflete a guinada das instituições a um conservadorismo terrível, que visa à promoção de uma higienização social, em nome da família, da tradição, dos bons costumes e até de Deus. O mundo vê o discurso fascista, com toda sua carga de ódio gratuito, avançar com força na mídia corporativa, nos parlamentos e governos, nos órgãos do Judiciário e do Ministério Público (nesses últimos casos falando especificamente do Brasil) e uma instituição social que congrega milhões de pessoas, com suas idiossincrasias e paixões, e que, para honrar o princípio exposto no seu próprio nome, deveria primar pela luta contra essa marcha obscurantista, atua como caixa de ressonância e antena difusora de preconceitos e referências datadas e absolutamente retrógradas.

Teria muito mais coisas pra falar, inclusive do lamentável clip lançado para promover o evento ianque, de que o Flávio tinha me falado e que passou nos telões do Beira-Rio após o término da saga do Saci, mas deixo pra outro momento, porque é realmente muito triste que as coisas no Internacional estejam desse jeito. Mais triste ainda é a gente se ver impotente para fazer qualquer coisa e perceber que isso parece um caminho sem volta.